Tragédias urbanas: A responsabilidade compartilhada

(Jornal Cachoeiras – 17/04/2010)

O direito constitucional perfaz-se como arma para evitar danos maiores sobre o organismo social, mas paradoxalmente, se estabelece sobre seu texto conflitos que migram para a prática também como um escudo impeditivo de punições àqueles que direta ou indiretamente desrespeitam as regras contidas na Carta de Direitos.

Os últimos acontecimentos relacionados às chuvas nos principais municípios do Rio, colocam em discussão as iniciativas gerenciadas pelo poder público. Muito têm se falado sobre as omissões, destacando-se que as responsabilidades recaem diretamente sobre as inoperâncias. Fato é que a tragédia localizada não poderia ter sido impedida, por mais que a atuação dos governos fosse eficaz.

Sempre que catástrofes naturais emergem situações alarmantes, o próprio sistema jurídico situa os poderes na condição de isentos dos efeitos causados pelos sinistros. Apuram-se sim, as responsabilidades de cunho preventivo que, muito amiúde, desembocam numa série de contextos, onde na maioria dos casos constatam-se somas entre as autoridades e a sociedade.

No caso específico dos deslizamentos de barreiras que ocasionaram mortes e inúmeros desabrigados, o que restou evidente foi um problema muito mais profundo do que se esmera a especulação: o problema social da habitação e do desordenado crescimento urbano. Estas pontas, encobertas pelos fatos são problemas que se arrastam durante décadas no Estado e, a priori, criam instabilidades por mais que as autoridades executem medidas para remediar seus impasses.

No primeiro período do mandato do prefeito do Rio uma das suas medidas causou frisson entre as comunidades: a implantação de um muro para delimitar as áreas habitadas das áreas de preservação da encosta. A medida, apoiada pelo governo do Estado, visava conter as construções irregulares, além do avanço em áreas consideradas inadequadas à moradia. Era esperada a polêmica, mas não que as discussões versassem sobre os direitos consagrados nos artigos 5º e 6º da Constituição tais como moradia, saneamento, isonomia, dignidade e liberdade. Os direitos humanos foram abordados com uma dimensão intimista e visivelmente oportuna, mas pouco consistente e bastante manipulável.

De um lado, a administração necessitando conter a degradação ambiental e as carências relacionadas à moradia: coleta de lixo, esgotamento, distribuição de água e etc. Do outro, famílias afetadas pelo mau gerenciamento da política de habitação, anos a fio.

Em nome da liberdade e do direito à moradia, o confronto comunitário com as autoridades mitigava o dever de prevenção que as edificações em áreas de risco demandam. Em muito se criticou a decisão do prefeito, considerada atentatória ao direito constitucional dos moradores.

Hoje, com a notória tragédia ocasionada pelas chuvas, aspectos como estes não podem ser ignorados. O desolamento das perdas suplanta, demasiadamente, as parcelas de responsabilidades que cada qual tem em relação aos fatos.

Lamenta-las é o que nos resta, mas os acontecimentos reforçam a necessidade de se implantar um novo paradigma de atuação que relacione os direitos da sociedade e as políticas executadas poder público. A justa medida, em ambos, os pólos, é a tarefa mais árdua.

Maria da Penha Maia

A Lei Maria da Penha traz para o mundo jurídico a história de uma brasileira, trabalhadora, como tantas outras que foram criadas por pais amorosos e que receberam bons princípios e valores fundados na tradição trabalho-família-propriedade.

Apaixonou-se, como toda mulher e como toda mulher também sonhou que sua felicidade estaria sacramentada através do casamento: o convívio com a pessoa amada ainda consolidaria a maternidade - almejada pela maioria das mulheres. Casou-se, teve filhos, mas durante anos de convivência sofreu todo o tipo de violência que submete a mulher ao império do medo e do silêncio.

Após ter sofrido a segunda tentativa de homicídio, em 1983 Maria da Penha Maia decidiu se separar e denunciar seu marido. O Ministério Público recebeu a denúncia um ano depois. Ele foi condenado à oito anos, no entanto, utilizou os recursos jurídicos para protelar o cumprimento da pena.

O caso teve repercussão pública, chegando à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, que acatou a denúncia de um caso de violência doméstica, pela primeira vez, e imputou ao Judiciário brasileiro a omissão ao caso Maria da Penha. Em 2002 Herredia Viveiros, seu ex-marido foi preso, cumpriu dois anos de prisão e hoje está em liberdade.

Sancionada em 07 de agosto de 2006, a Lei - que leva o seu nome - vigora com a intenção de proteger a vítima contra todos os efeitos potencializadores da violência contra a mulher. A interpretação sustentada por alguns magistrados é a de que a lei, necessária por excelência, peca por tornar inviável a sua própria eficácia. Fala-se, por exemplo, em inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha por admitir a prisão do agressor, sem que ele tenha respondido ao devido processo e por este condenado à restrição de liberdade. Este ponto transita por outro problema: a superlotação das delegacias, que ao encarcerar o agressor, nega-lhe o tratamento diferenciado por ali estar em circunstância diferenciada, se comparada à dos demais presos.

Outro aspecto no tocante à prisão traz um desdobramento criticável da lei: depois de oferecida a denúncia, se caracterizada a necessidade da prisão, a soltura do preso é inaceitável (ainda que a vítima a tenha oferecido apenas com o desejo de vingança) desde que outras causas supervenientes à agressão, configurem uma evidente suposição de que o agressor atente contra sua integridade física, a exemplo aqueles casos em que a agredida ao oferecer a denúncia informa que seu agressor mantém uma arma em seu poder. Fica configurado, portanto, o teor preventivo da prisão devido à posse da arma, se for o caso.

Para sua eficácia, seria necessário que o Estado já tivesse liquidado os problemas advindos do sistema carcerário - realidade que violenta, inclusive, o direito das presas; que a lei penal não violasse as proteções constitucionais e à própria mulher fossem dadas condições de igualdades para libertá-la do poder econômico dos seus potenciais agressores. Não sendo o bastante, a cultura sexista, também reproduzida por nós, tende a tolerar a violência como fruto de uma tradição histórica.

O grande conflito do Direito é que a lei refletirá sempre um anseio humano, nem sempre concretizável pela realidade que o cerca.

De Richthofen a Nardoni

A violência aflora de tempos em tempos para nos despertar de uma realidade, quase subestimada em relação às barbáries que a humanidade é capaz de produzir. Geralmente, provocando profundo impacto público, certos crimes nos remetem a um sentimento de igualdade, quando a identificação com o sofrimento alheio nos obriga a tomar em relação ao próximo sentimentos genuínos de solidariedade.

Se a dor do outro nos comove, a dimensão do homem deixa de ocupar as esferas individuais para integrar a dimensão coletiva, cuja finalidade gregária encontra na cooperação o sentido principal para a manutenção do corpo social.

Há muito, certos sintomas denunciam que a sociedade adoeceu. Em maior ou menor grau, a violência se estabelece como patológica dentro de um organismo que pulsa diversas vertentes que a propiciam. Entre elas, a distinção entre indivíduos, oriunda de um sistema neocapitalista que, por essência, promove graves desigualdades.

O caso Isabella Nardoni ilustra, não apenas que o brasileiro se comove com o seu semelhante, mas o desejo de que não seja mais um em que a mão da Justiça negligencie, perante a lei, a igualdade penal entre ricos e pobres.

Assim como o caso de Suzane Richthofen e do adolescente que ateou fogo naquele índio em Brasília, o julgamento do caso Isabella nos coloca face a face com a frieza, a crueldade e a violência de uma delinqüência abastada e bem suprida.

Os bons advogados que assistem a causa tendem a transformar a verdade num jogo de erros e contradições, gerando a sensação de que a justiça pende num corpo frágil de hipóteses fragmentadas e focalizadas na perspectiva de quem defende ou acusa. Assim funciona o universo do direito penal, sendo um deserto abastecido pela comoção do júri, pela fragilidade da verdade e pela necessidade de inocentar ou condenar.

O conteúdo da verdade não está num manuscrito, sendo cego o olhar para o que esta característica implica. É o que retira da espada dos Tribunais o derradeiro equilíbrio entre a aplicabilidade da lei, o delito e a sentença.

Mas se outrora, o delito era prática localizada nas classes menos favorecidas, hoje se verifica o crime hediondo associado às pessoas bem sucedidas. Apesar de vivermos acirrada desigualdade econômica, que ambienta o direito numa desigualdade de sentenças, a violência produz vítimas em todas as classes e iguala os Nardoni em relação à tragédia das inúmeras isabellas, vítimas anônimas que morrem pela crueldade dos homens ou pelo abandono estatal.

Embora os réus estejam bem representados e o Ministério Público empenhado em provar a culpabilidade, nada ameniza o sofrimento do olhar inocente que se perdeu. O clamor de justiça a que alude este julgamento parece apelar muito mais para a reintegração do homem com a fraternidade do que com o necessário desejo de punição.

Choremos sim, pela morte da pequenina Isabella, e por todas as outras crianças, vítimas da violência cotidiana. E possa esta dor provocar em nós, um instinto maior que prime pela valorização da vida em escala crescente e coletiva.

Gabriel


Vieste - força terceira a gerar meu ventre – que se fez solo fértil para te receber.

Chegaste assim – semente para o meu amor – e trouxeste a luz como um anjo que singrando as nuvens depositou esperança e transbordou tons de azuis.

Não Gabriel, não sei expressar todo o meu amor. De repente fiquei absorta, sem palavras, porque sei sentir, mas não resumir o que a Vida – mulher primeira - melhor traduz.

Como estrela que vem brincar comigo, te vejo rindo à toa trocando um amor puro, eterno, forte, denso, profundo, livre...

É filho, no meu colo te farei cirandas e no seio onde outrora germinara o desejo de tua vinda, hoje se derrama o meu amor.

Meu pequeno raio de luz, força gerada em meu ser, sentido novo da existência que uniu para sempre teu pai, tua mãe e tua geração.

Ah filho, de nós brotaste metade que dentre mil só por ti se fez metade – mistério da Vida refazendo a espécie e renovando a infância, a força, os sonhos e as emoções que já nos vão à flor da pele.

Seja tua chegada matéria-prima de um amor sagrado, que te nina com todo o cuidado para que os sonhos se espalhem por entre a gente.

Gabriel...

Como dizer, senão sentir? A catarse me encontra e me vejo assim, tomada pelo teu olhar, pelo teu sorriso, e me dou conta de que a tua pele está em mim.

Que o sentimento melhor defina o que me vai por dentro, pois as palavras por excesso ou falta me deixam muda.

Resta então dizer “te amo” para simplificar tudo o que emoção não codifica.

Tua Mãe,

Carla Lessa